segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O Senhor das palavras*

Bebendo prosas, versos e rimas do anjo demoníaco que é o mutável Marcos de Farias Costa


O poema é a soma/ da imagem como som./ A metáfora assoma/ quando o poeta tem o dom”, diz em um poema cujo nome se funde com o seu próprio: Poemarcos. E não poderia ser diferente, já que parece mesmo falar de si. O elegante livreiro, poeta, escritor, compositor (e boêmio de carteirinha!), Marcos de Farias Costa, está sempre disposto a bater um bom papo e não há assunto que dispense. Coisa boa é adentrar pelas portas da Livraria/Sebo Dialética, na Rua do Uruguai em Jaraguá, com bastante tempo para usufruir horas em sua companhia.

E foi assim a entrevista ao O JORNAL: uma conversa gostosa em meio ao cheiro bom dos livros.

Há seis anos surgiu a Dialética: “Eu já tinha o imóvel e pensei muito entre fazer um bar ou um cassino, mas terminei optando pela livraria”, e brinca: “O que eu considero uma traição!”. Começou com um acervo de apenas mil obras, depois adquiriu a biblioteca com oito mil livros de um advogado falecido. Hoje, também vende livros novos e compra antigos por preço justo. Tem um departamento de livros raros e primeiras edições: “Muita gente coleciona bebidas, carros, mulheres. Mas poucos colecionam livros”.

Formado em Psicologia, nunca exerceu a profissão por não se sentir vocacionado e foi bancário por muito tempo. “Minha formação mental mesmo foi na Praça Deodoro. Lá conheci poetas, gente de teatro, etc. Foi onde conheci Jorge Cooper, que me abriu os olhos para a literatura, eu que já tinha uma influência de casa, um grande respeito pelos livros”, lembra.

“Quando o conheci foi aquela epifania. Nunca vi um homem tão culto, sensível e agradável”, descrição que cai como uma luva no próprio Marcos. “Nos parecíamos naturalmente: éramos da noite, bebíamos muito, fumávamos, mas minha poesia não tem nada a ver com a dele”, fala com orgulho e saudade visível do homem que foi seu grande amigo e espécie de guru na concepção de vida.

“Eu morava perto da rua do hospital (hoje Barão de Maceió, a rua da Santa Casa), então, sempre fui da boemia. Vivia muito nos bares e cabarés da vida. Foi uma formação boêmia, etílica e cultural, que além da Praça Deodoro, foi no Jaraguá”. Como exímio boêmio que é, confessa, divertido: “Passei 10 anos de porre. Dos 30 ao 40 anos, eu passei bêbado. Foi o auge!”.

“Minha história com a música é fácil de falar. Ia muito à rádio Difusora e também a rua do hospital era repleta de músicos. Além disso, todos lá em casa gostavam de música, mas meu irmão (o psiquiatra e também poeta e compositor Marcondes Costa) é quem mais se sobressaiu, inclusive tendo uma música gravada pelo Luiz Gonzaga. Comecei a compor nos anos 70 e continuo compondo até hoje”.

Editou por cinco anos a revista Dialética, que se dedicava à tradução de poemas, ensaísmo crítico e literatura comparada. Nos anos 80 apresentou o programa de rádio “Canto da Terra” na antiga rádio Difusora, que apresentava somente artistas alagoanos. Ficou à frente do jornal Fonfon, sobre música popular, e escreveu artigos de forma independente, que publicou em diversos jornais. Artigos estes que compõem o livro À Queima Roupa, publicado em 1995.


Do poema ao desaforismo

Aos 28 anos, em 1982, publicou seu primeiro livro, O Amador de Sonhos, no qual faz pulsar o leitor com “Primeira quase uma elegia de amor metafísico”. Depois anos depois, lançava sua segunda obra, Ócios do Ofício, onde o curto “Jano Bifronte” (Quase perco a cabeça/ por aquela mulher./ As duas cabeças.) rouba a atenção. Em 1988 publicou Coisas & loisas, que define como desaforismos. Os contos eróticos reunidos no – segundo Antônio Callado em depoimentos reunidos na orelha de À Queima Roupa – orgiático “Per os, per anum, per vaginam” foram lançados em 1991.

Depois de uma considerável pausa de sete anos na poesia, também em 1991, lançou a terceira coletânea de poemas, dessa vez, com uma maior quantidade, A quadratura do círculo, em que “À maneira de Jorge Cooper” parece confessar seu desafeto – quase medo – para com a velhice. Em 1992 e 1993 foram lançadas, respectivamente, “Não tem tradução” e “Transmissões”, antologias poéticas bilíngües.

Em 1997 publicou “A comédia de Eros”, em que Marcos se mostra mais afiado, erótico e ardente do que nunca. E, entre seus vinte e cinco poemas, é complicado apontar o que se destaca – “Amor fati”, “Autobiografia sexual machista”, “Maceió na cama”, “Niphleseth”, “Psiu! Ela está gozando”, “No bordel da gorda Gerda”, “Meus oito ânus” e “Pirralha piranha”. Em Poemas Profanos, o curto “Aura” culpa o leitor pelo encanto da poesia e ainda o presenteia com “Autobiografia”, “Lilith”, “Soneto no Shopping”, “Pontos cardeais” – onde se diz limitado por problemas de saúde e confidencia pensar demasiadamente na morte – e “Vi Vi”.

Bibliografia crítica sobre João Ribeiro” foi lançado em 1998. Mais uma antologia foi lançada em 2000, intitulada Doce Estilo Novo, lançada em mercado nacional e onde, em nota, Gilberto Mendonça Teles frisa que o Brasil vai além do Rio e São Paulo, que “há em cada capital brasileira, hoje, alguns bons, excelentes poetas, com vários livros publicados pelas editoras locais e, por isso mesmo, desconhecidos (ou quase) da crítica, dos programas escolares e do resistente leitor de poesia” e que vem daí o sentido principal da publicação.

Atualmente, Marcos tem dois projetos prontos aguardando revisão para serem lançados no segundo semestre: um mergulho no universo lésbico, no intitulado Cantata Sáfica, somente de "poemas de mulheres para mulheres"; e uma tradução do texto “A História do Soldado”, do poeta suíço Ramuz. Pretende também terminar um dicionário lésbico, ainda sem data prevista.

A riqueza de vocabulário está sempre presente em toda a sua obra. Riqueza esta que não chega nem perto do hermetismo; pelo contrário, é poesia simples, mas nunca simplória ao leitor sensível. Trechos de sua vida, memórias – sempre a boemia – e confissões podem ser achados em muitos de seus versos. Transcende o sentido de dom, ele é a poesia. Ah, quem dera essa reportagem pudesse rimar!


Texto e foto: Larissa Fontes

*Matéria publicada no impresso O Jornal, em 12 de junho de 2011, na página Universidades.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Poder da Cura de Nossas Rezadeiras*

Envolto por um misticismo que atravessou os tempos, um grupo de mulheres leva consigo o poder das palavras, da fé e das ervas


Dona Zelina com seu inseparável santinho: "a coisa mais poderosa da minha vida" (Foto por mim)
Muita gente tem a lembrança – distante ou não – de ter sido levado a uma curandeira um dia. A imagem é quase sempre a mesma: uma senhora simpática, misteriosa e cheia de paz. Os métodos são variados, passeiam por banhos de ervas medicinais, lambedores, garrafadas e orações com ramos de folhas. As curandeiras (ou benzedeiras ou rezadeiras, como também podem ser chamadas) surgiram nas culturas africanas e indígenas e são personagens cada vez mais raras nos dias atuais.

Olhado, quebranto, espinhela caída, vento virado, fogo selvagem, ventre caído e erisipela são algumas das doenças quase folclóricas mais comuns no universo popular dessas senhoras.

A antropóloga Sílvia Martins - professora PhD em antropologia e pesquisadora do laboratório de Antropologia Visual em Alagoas (Aval) do Instituto de Ciências Sociais da Ufal – realizou uma pesquisa de campo sobre o xamanismo indígena entre os Kariri-Xocó durante nove meses. A pesquisa serviu de base para o doutorado pela Universidade de Manitoba, no Canadá. Xamãs são os índios curandeiros que, como nossas rezadeiras, praticam os rituais de reza com muita frequência - inclusive para retirar mau olhado, por exemplo – tanto em indígenas como em não indígenas. Conhecimento este, que não só se relaciona com, mas é, na verdade, uma das origens da prática das benzedeiras. Em sua tese, intitulada Gender and Reproduction: Embodiment among the Kariri-Shocó of Northeast Brazil (Gênero e Reprodução: Corporalização entre os Kariri-Xocó do Nordeste do Brasil), descreve rituais e práticas de cura que comprovam como o xamanismo que praticam é um conhecimento médico que tem eficácia.

Ela diz que é preciso destacar que a prática das curandeiras também se trata de um conhecimento médico: “No nosso contexto cultural, há esse reconhecimento de que o mau olhado não é curado pela medicina. Eu conheço casos onde os próprios médicos indicam que se leve o paciente a uma benzedeira”.


Dona Lóla na frente de seu altar, a maioria das imagens foi presente (Foto por mim)

É como se as pessoas escolhidas pelo dom da cura se comunicassem com espíritos que seriam verdadeiros guias e que ditariam os ensinamentos, seja através de sonhos, de vozes ou visões. É um conhecimento empírico, onde o ensinamento prático não existe e não pode ser passado para ninguém. Sílvia diz ter percebido em suas pesquisas, que no xamanismo haveria uma certa expectativa de que numa mesma família, a incidência do dom se manifestar fosse maior pelo fato de elas trabalharem com espíritos específicos, como guardiões. Então, haveria uma continuidade do trabalho. O mesmo poderia acontecer com as curandeiras. A professora também aponta para a seriedade com que são feitos os rituais de rezas, onde se percebe um verdadeiro rito de saída, de realmente tirar aquele mal de dentro do doente: “Não se pode ficar na porta enquanto a benzedeira está rezando em alguém, pois se acredita que o mal vai passar por alí para ir embora, o doente abre a boca para que aquilo saia pelo ar”. Especificamente no xamanismo, acredita-se que o mal se instala nas pessoas que se encontram de “corpo aberto”, então, no ritual de reza, o corpo é fechado e protegido.
A prática das curandeiras é uma verdadeira mistura de elementos indígenas, afro-descendentes e católicos. Por exemplo, o que acontece entre os Kariri-Xocó no ritual, não é que os xamãs enviem o mal para alguém, e sim devolvem, o levam de volta para quem o emitiu. “A noção do bem e do mal é muito clara em todas essas matrizes. Foi isso que possibilitou toda essa troca, essa mistura”, conclui Silvia.


A história das mulheres que tem o dom da cura

A encantadora Dona Lila (Foto por mim)

Leonila Francisca, 75 anos, é a apaixonante Dona Lila. Tem olhos que sorriem e um jeito carinhoso. Natural de Matriz do Camaragibe, veio pra Maceió aos 17 anos trabalhar como doméstica. Tem um centro espírita em casa, onde realiza reuniões semanais; frequenta a igreja católica e segue os fundamentos do Candomblé, dominando, inclusive, o jogo de búzios. Quando perguntada sobre que religião segue, afinal, diz sempre sorridente: “Eu também queria saber! O que eu gosto mesmo é de ajudar os outros”.

Começou a manifestar sua mediunidade muito cedo. Com 7 anos, já recebia entidades: “Minha mãe dizia que eu era doida, porque naquela época ninguém entendia o que era aquilo”. A levaram para ver um senhor espírita, que disse que “a menina tinha um mistério”. Ficou com tanto medo, que correu para a igreja e fez tudo quanto é promessa para tentar se livrar daquilo. Pagou inúmeros juramentos, todos em vão. “Eu não queria me assumir de jeito nenhum, tinha muito medo”, admite.

Teve que se entregar depois de um sonho que teve. Sonhou com uma moça de cabelos compridos, vestida de calça jeans e camisa de manga comprida azul que chegava em sua casa para receber uma cura. No outro dia, a mulher apareceu exatamente como no sonho: “Aí não teve jeito, tive que aceitar”.

Frequentou a Federação Espírita por alguns anos e também passou um tempo no Candomblé, mas depois da morte da mãe e do pai-de-santo responsáveis pelo terreiro, não voltou mais. Prefere hoje, fazer tudo do seu jeito.

Com relação às curas, diz que as realiza há muito tempo. Desde criança, quando a mãe ou os irmãos adoeciam, ela prontamente pegava qualquer galhinho e dizia que ia curá-los. “A primeira pessoa que eu curei, foi o meu irmão. Ele comeu uma jaca mole e passou muito mal. No meio da noite, alguma coisa me tomou e fui atrás dos restos da jaca que ele tinha comido e fiz um chá. Ele tomou, vomitou todos os caroços e ficou bom. Fiz isso tudo fora de mim, eu não lembro de nada, quem contou foi minha mãe. Disse que meus lábios de repente cresceram. Era o caboclo me tomando”, conta.

Dona Lila não sabe ler, nem escrever, mas diz que o que sabe “ninguém aprende em escola, é um dom que Deus dá”. Também não cobra nada por suas bênçãos e não tem hora para receber quem precisa de ajuda: “As pessoas vem a qualquer hora, vem desesperadas e pedem pelo amor de Deus. Falou em Deus, minha filha, eu não tenho como negar”.
D. Zelina com seu cachimbo (Foto por mim)
Zelina Sebastiana dos Santos, 71 anos, é uma índia migrada para a cidade grande. Jeito sereno, simples e dona de uma risada sincera e gostosa. Nasceu numa aldeia em Palmeira dos Índios, só lembra que “a mãe endoideceu” e que ficou sozinha no mundo muito cedo. Chegou a trabalhar num engenho cortando cana e aos 13 anos se casou com um homem muito mais velho, que faleceu com apenas três anos de casamento. Ainda trabalhou como parteira por volta dos 18 anos e com essa idade já mostrava ter uma certa habilidade para lidar com vidas. Já nessa época, tinha receitas especiais, como um caldo feito com pimenta do reino que estimulava as contrações do parto e um curativo com panos queimados de fumo para que o umbigo do bebê caísse em três dias (curativo esse, que, segundo ela, ainda hoje é imbatível).

“Não sei ler, não sei escrever, não sei nada. Mas sei todas as minhas orações e é o que importa”, é categórica. Por ser índia, diz que as pessoas começaram a procurá-la para curas, mas que não sabe dizer como começou a, de fato, realizá-las. Também não tem ideia de como aprendeu tudo o que sabe: “Nunca ninguém me ensinou nada, tudo chegou em mim como um dom”. Prepara garrafadas de todos os tipos e com uma quantidade enorme de ingredientes: vinho branco, raiz de caiubim, raiz de jurubeba, samba-caitá, pega-pinto, banana papagaio, rosa garrida, pra-tudo, babosa, pinhão roxo, atelã de Santa Bárbara, flor de colônia e mais ainda uma infinidade plantas de nomes populares.

Como uma boa devota do Padre Cícero, tem uma relação forte com Juazeiro do Norte, para onde viaja sempre que pode para ver seu santo padrinho e trazer o Bálsamo da Vida, um elixir que se acredita ter sido receita do próprio Padrinho Cícero e que cura tudo. Foi lá que ganhou o que, segundo ela, é a coisa mais poderosa de sua vida: uma miniatura de Santo Antônio Caminhante. O segredo é fazer um pedido e esconder a criança que ele carrega, só devolvendo-a quando obtiver o que se deseja.
Dona Lóla e suas plantas (Foto por mim) Jacira Pereira, 75 anos, é a dona Lóla, como é conhecida. Exala sabedoria, segurança e respeito. Só veste azul e branco, as cores de Nossa Senhora. Nasceu no litoral norte de Maceió, onde vive até hoje. Desde criança, diz que gostava de aconselhar as pessoas e que sempre sentiu que era diferente. Católica fervorosa, já quis ser freira, mas acabou por se casar. É analfabeta, mas trabalhou muito tempo com artesanato, atividade com a qual conseguiu criar sozinha os sete filhos, frutos de dois casamentos: “Eu não leio, não estudei, não sei de nada. Eu só sei, é uma luz divina”.

Neta da também curandeira, Hortência Pereira, cresceu vendo as atividades da avó, a quem tinha uma ligação forte, mas nunca quis seguir seus passos. Um dia foi acometida por uma erisipela (uma infecção de pele que invade a gordura e se instala nos vazos linfáticos) que não sarava de jeito nenhum e assim, durou muito tempo. Nas crises enfrentadas por causa da doença - talvez em um estado onírico - ouvia vozes estranhas e em meio à agonia, fez um voto de que se ficasse boa, curaria quem precisasse, sem cobrar nada por isso. Promessa esta, que é cumprida seriamente até hoje.

Dona Lóla conta que ainda lembra da primeira cura que realizou, há mais ou menos 35 anos atrás: “Uma menina chegou aqui chorando, muito atordoada, com uma dor de cabeça muito forte. Eu coloquei minhas mãos nela e rezei. Ela ficou boa e espalhou pras pessoas. Depois desse dia, muita gente começou a me procurar”.

Apesar das condições humildes, faz muita caridade e para ela chega a ser uma ofensa querer pagar pelas suas bênçãos: “Eu não cobro um centavo porque não sou eu quem cura, é Deus”, esclarece. Orações, cantos, velas, plantas, garrafadas e lambedores são seus únicos instrumentos. “Eu acendo a vela e assim, consigo saber o estado da pessoa, é o meu contato com o anjo da guarda”, explica, frisando que coisa que aceita de bom grado é doação de velas, já que as usa em excesso.

Há dois anos, sua saúde começou a pedir atenção. O ritmo de trabalho era pesado demais, as pessoas desesperadas batiam em sua porta até pela madrugada. Desde então, aconselhada por seu médico, durante quatro dias na semana, no período da tarde, distribui senhas para o atendimento, embora confesse que é impossível recusar ajuda a qualquer pessoa que a procure: “Me sinto mal em negar”.

Pessoas de diferentes classes sociais procuram ajuda na religiosidade popular das benzedeiras. A dona de casa Adjane Lima, 18 anos, diz que percebeu que sua filha de 20 dias estava bocejando demais, muito quietinha e abatida. Recebeu conselhos para levá-la até a casa de Dona Lila, que é muito conhecida no bairro do Jacintinho, onde mora. “A cura dela é de 3 dias. No primeiro, ela rezou na neném e amarrou essa fitinha vermelha no braço dela. É a segunda vez que venho e já senti melhora”, conta. A professora aposentada, Maria das Graças Carvalho, 60 anos, conta que cresceu ouvindo que existem pessoas que tem energia negativa que até sem querer, podem lhe fazer mal: “Já aconteceu comigo de, em um ambiente de trabalho, eu começar a murchar mesmo, como uma planta. Passei mal e depois me levaram numa benzedeira. Ela me abraçou, me recebeu com muita alegria e rezou em mim. Melhorei muito e depois disso, cansei de levar meus filhos pra ela tirar mau olhado. É o poder da fé”.

Olhado, espinhela caída e os males que são curados pela fé, nunca nas farmácias

Dona Lila no momento em que rezava um bebê (Foto por mim)

Mau olhado (ou quebranto) é a doença causada pela energia negativa do olhar de pessoas invejosas ou maldosas. Muitas vezes não é intencional, mas sua força pode esmorecer o alvejado, causando sintomas de depressão, como angústia, pessimismo, nervosismo exagerado e até insônia. Sabe-se que foi atingido quando de repente começa a espirrar e bocejar sem parar.

Espinhela caída é o nome popular de uma doença chamada Lumbago. Causa dor na boca do estômago, costas e pernas e cansaço físico anormal. Espinhela é um osso pequeno que fica no meio do peito, entre o coração e o estomago que pode envergar para dentro. A benzedeira tira a medida do dedo mínimo ao cotovelo e depois, de um ombro a outro, se as medidas não coincidirem, é detectada a doença. Segundo a crença, médicos não conseguem identificar.

Vento (ou Ventre) Virado é mais acometido em crianças, geralmente quando se brinca de jogá-las para o alto. Basicamente é a sujeição a uma força maior do que se está acostumado. Causa mal estar, vômito e diarréia. As benzedeiras viram a criança de cabeça para baixo e batem seus pés na folha de uma porta.

Fogo selvagem é uma doença de pele, cientificamente conhecida como Pênfigo. Nascem bolhas no couro cabeludo, peito e costas e podem se espalhar pelo corpo todo – até internamente, quando mais grave. Não se sabe o que causa, mas o remédio é uma benzeção.

Erisipela é uma infecção de pele causada por bactérias e pode ser acompanhada de febre. Invade a gordura e se espalha pelos vazos linfáticos. Geralmente ataca as pernas, principalmente de mulheres. Aprincípio, aparecem manchas vermelhas, depois incham e surgem bolhas. Também é conhecida por Vermelhão e Gota.


Fotos e Texto: Larissa Fontes

*Matéria publicada no O Jornal do dia 3 de Abril de 2011, na página Universidades e ganhadora do Prêmio Braskem de Jornalismo 2011, na categoria estudante.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Quando são um só

Ele era calmo e doce. Levava uma vida pacata, sem grandes acontecimentos. Nada nunca o tirava do sério. Era de uma cor esverdeada, às vezes marrom. Tinha cabelos curtos, puxando pro marrom. Os que o acompanhavam eram queimados de sol, não ligavam pra roupas, nem futilidades, eram doces também, por convívio. O amavam, o tratavam bem e sabiam se deleitar dele. Ele, como agradecimento lhes dava alimento e até os levava aonde quisessem em uma viagem calma. Seu povo conversava com ele, contavam suas mazelas e ele ouvia atento, há até quem diga que ele dava ótimos conselhos e cantava uma cantiga balançada, feito água batendo em barco de pescador.

Ela era agitada e salgada. Sua vida era conturbada, enfrentava muitos conflitos internos, verdadeiras tempestades. Era azul, às vezes verde. Tinha uma longa cabeleira amarela, quase branca. Os que a acompanhavam, a temiam, respeitavam, embora a amassem também. Eram salpicados de sal, fortes e corajosos. Ela gostava deles, mas às vezes precisava ficar sozinha e queria se esconder. Só que não se dava conta de que era muito grande para isso, então ficava enfurecida e podia até fazer mal a quem chegasse perto. Não pensem que gostava disso, pelo contrário, se sentia desengonçada e mais enfurecida ficava, queria se conter, mas era muito grande pra isso também. Seu povo demorou a entender, mas hoje já conseguem e respeitam seu tempo. É sentimental como mulher que é mulher. Ama seus companheiros, lhes dá tudo o que pode. Em certos períodos abriga a quem necessitar de seu aconchego, seja por um curto tempo, seja por noites e noites a fio.

Eles viviam em lugares diferentes, embora próximos. Ele a viu pela primeira vez a muitos e muitos tempos atrás e assim permanecia, observando-a de longe, imaginando tudo que se possa sobre ela. No princípio, ela não o enxergou. Digamos que não se deu conta de que ele estava ali. Tinha a cabeça sempre cheia, sempre em seus conflitos internos, em suas vontades loucas de se esconder, por isso não o percebeu. Mas ele estava ali e podia esperar.

Em um dia de sol bonito, ela acordou depois de um sonho leve (ela às vezes tinha pesadelos terríveis!) e até assobiando. Ele estava lá como sempre, observando-a e não pode deixar de ouvir seu assobiar. Julgou esse um dia bom para se apresentar àquela moça que tanto achava bela.

Sorriu para ela e foi se chegando devagar. Ela apertou os olhos para se certificar de que aquele sorriso era para ela e sentiu um cheiro doce invadindo, então viu que ele se aproximava manso e sorridente.

- Me chamam de Rio. Apresentou-se, sentindo gosto e cheiro salgado.

- Eu sou Mar. Respondeu, acuada.

Ele falou sobre sua vida e seu povo. Ela lhe contou de lugares que já tinha visitado. E tinham tanta coisa diferente, mas tanta coisa em comum, que foi sem querer que tiveram que se separar naquele dia. Mas o destino já tinha se consumado, já tinha feito sua parte de ir dar uma cutucadinha nele para que saísse do silêncio e fosse até ela. Tinham sentido uma coisa nunca antes experimentada por nenhum, e por isso não sabiam reconhecer esse sentimento.

Só se sabe que depois disso, todos os dias a certa hora, ele estava nela e ela estava nele. Ele era ela e ela era ele. Em certa hora do dia, eles eram um só e se amavam. O Rio e o Mar.


*Texto antigo, postado no dia 31 de Março de 2009. Foi engraçado hoje ler e me reconhecer nessas palavras. Me reconheci ao ponto de não mudar sequer uma vírgula. Queria voltar a saber escrever. Se é que um dia soube. Mas eu ainda penso tanto...

sábado, 1 de janeiro de 2011

O Quebra de Xangô - O medo de um possível retorno

Casos de intolerância religiosa provocam temor da volta da repressão aos cultos afrodescendentes

Festa de comemoração ao dia de Iemanjá, no dia 8 de dezembro, na praia de Pajuçara
(Foto por mim)

“Eu e meus irmãos fomos criados com a idéia de que as práticas religiosas africanas mantinham pacto com o demônio e que as pessoas que freqüentavam os terreiros de Candomblé faziam feitiçaria, macumba. Quando eu era criança, no breu da noite, batuques de um terreiro no caminho de casa, disparavam meu coração.”

São essas palavras que dão início ao documentário “1912 - O Quebra de Xangô”, do antropólogo Siloé Amorim. Mas poderia ser um desabafo feito por qualquer pessoa, já que é assim que a maioria dos brasileiros é criada. O filme conta a história da repressão que os cultos afro-brasileiros sofreram nesse ano em todo o Brasil.

Quase um século depois, Maceió voltou a ser palco de episódios desse tipo. Alguns pais e mães de santo tiveram seus terreiros invadidos e objetos sagrados apreendidos pela Polícia Militar. Segundo o advogado e diretor da Comissão de Defesa das Minorias Étnicas e Sociais, Alberto Jorge Ferreira, aconteceu de em uma dessas invasões, uma mãe de santo ainda estar com seu orixá incorporado. Alberto ainda diz que é preciso rediscutir a Lei do Silêncio: “Essa lei se tornou a maior perseguição ao povo de religiosidade africana”. Os religiosos estão com medo de que essa situação se agrave e que possa vir a se transformar em um retorno de 1912.

Desde o começo dessas ações, a comunidade religiosa afro da cidade juntamente com a Comissão de Defesa das Minorias Étnicas e Sociais e a Federação Zeladora dos Cultos em Geral, vem se reunindo com autoridades governamentais, com o Ministério Público e coronéis da PM, pedindo para que a Lei do Silêncio seja reavaliada e que seja analisada a sua inconstitucionalidade para com as religiões. Alberto Jorge conta que até já foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta, onde a polícia se comprometia em rever seus conceitos para com essas religiões, mas o problema não foi resolvido.

Em contrapartida, o comandante do CPC, Gilmar Batinga, diz que é preciso desmistificar: “A Polícia, como instituição, não tem religião, ela está aí para cumprir a lei”. E ainda explica que na Lei do Silêncio não consta o limite das 22 horas como muita gente pensa. Se há uma perturbação do sossego alheio e essa perturbação ultrapassa a medição sonora de 80 decibéis, o procedimento é a apreensão do objeto perturbador, seja ele qual for. O comandante ainda faz questão de dizer que não existe perseguição alguma e que a Polícia está aberta ao diálogo.

O QUE FOI O QUEBRA DE XANGÔ – Em Maceió, no dia 1º de fevereiro de 1912, a intolerância racial religiosa atingiu seu nível mais violento, se tornando um verdadeiro massacre. A história começou com uma perseguição ao então governador, Euclides Malta, que já governava há 12 anos, tinha ligação com os terreiros e havia recebido o título de papa do Xangô Alagoano. A oposição conseguiu destituí-lo e com isso, a Liga dos Republicanos Combatentes – uma associação civil miliciana liderada pelo sargento Manoel Luiz da Paz – junto com o apoio popular conseguiu cair com fúria nos terreiros. A multidão entrou quebrando tudo que viam pela frente, no auge do ritual, quando alguns seguidores ainda tinham o santo na cabeça. Bateram nos filhos de santo e queimaram objetos sagrados numa grande fogueira. A africana Tia Marcelina, fundadora do Candomblé em Alagoas e a mais famosa mãe de santo do estado, resistiu à invasão de seu terreiro e recebeu golpes de sabre enquanto, banhada de sangue, bradava: “Bate moleque, quebra braço, quebra perna, tira sangue, mas não tira saber”, gemendo para Xangô a cada chute.

O quebra-quebra não se restringiu apenas a nossa capital, se estendendo a várias cidades próximas. Os objetos que não eram queimados na fogueira pública eram levados para a sede da Liga e colocados em exposição (alguns objetos estão expostos até hoje no Instituto Histórico e Geográfico). Alguns dos pais e mães de santo foram buscar refúgio em outros estados, como Bahia e Rio de Janeiro. Os que ficaram continuaram a desenvolver suas práticas religiosas, pois temiam muito mais as possíveis punições de seus orixás, do que as das autoridades, o que resultou no humilhante “Xangô rezado baixo”. Sem rodas de dança, sem uso de tambores e atabaques. Os sacrifícios eram feitos tão discretamente como uma doméstica prepara uma galinha ao molho pardo e também não havia mais incorporações. “Restaram as orações sussurradas, acompanhadas de palmas discretas, como se tanto crentes como orixás tivessem vergonha de ainda precisarem se cruzar em situação tão vexatória”, escreve Ulisses Neves Rafael, em sua tese de doutorado intitulada “Xangô rezado baixo: um estudo da perseguição aos terreiros de Alagoas em 1912”.



Candomblé e Umbanda: as diferenças

Pai Manoel do Xoroquê (Foto por mim)
O Candomblé é uma religião de matriz africana. Cultua a Deus através de divindades com personalidades, habilidades e preferências individuais, os chamados Orixás. É puramente ecológica. Os Orixás são, na verdade, energias e fragmentos da natureza. Cada um representa e domina um elemento natural: Oxum (cor amarela), a deusa das águas doces; Iemanjá (azul e branco), a rainha das águas salgadas; Ogum (verde e preto), senhor das estradas, do ferro, dos metais e dos campos de batalha; Xangô (vermelho e branco), o orixá da justiça, senhor dos raios e trovões; Iansã (rosa e marrom), a guerreira dona dos ventos; Oxóssi (azul claro e prateado), o caçador, guardião da fauna e flora; Obaluaê (preto, branco e vermelho), o deus do sol, da cura; Oxalá (branco), orixá da paz; Nanã (branco e roxo), a purificadora da atmosfera, mensageira da morte; e Exu, o orixá mensageiro, que de maneira equivocada, pelo sincretismo, se confunde com o diabo. Ainda existem alguns Orixás de fundamento menos conhecidos. Os sacerdotes que chefiam os terreiros são chamados de Babalorixás – os homens – e Iyalorixás – as mulheres. Segundo o Babalorixá do terreiro Ilê Axé Legionirê, Pai Manoel do Xoroquê, para se iniciar na religião, é primeiramente necessário se descobrir de qual Orixá é filho (toda pessoa é escolhida no nascimento por uma ou mais divindades, que um pai ou mãe de santo identificará). Depois é preciso fazer limpezas de espírito, “para que saia toda e qualquer energia ruim”. O ritual de iniciação, a feitura do santo, representa um renascimento e começa pelo recolhimento: é quase um mês de reclusão, onde a cabeça do iniciante é raspada e são realizados banhos e oferendas, é onde todo o aprendizado começa. “O Orixá fala no coração”, diz Pai Manoel, que tem mais de 30 anos de Babalorixá.

Pai Júlio (Foto por mim)

A Umbanda, apesar de afro-descendente, foi formada dentro da cultura religiosa brasileira. Por isso, sincretiza elementos do espiritismo e do catolicismo. Segundo Pai Manoel, basicamente, é um Candomblé mais leve, já que os rituais não são tão intensos. O Babalorixá do Centro de Umbanda Ogum Megê, Pai Júlio, explica que a iniciação na Umbanda, por exemplo, não requer uma reclusão de 1 mês, apenas algumas restrições, como não levar sol e sereno e não ingerir certos alimentos. Os Orixás cultuados são os mesmos (sem as qualidades) e mais algumas entidades que diferente das do Candomblé, foram pessoas que viveram na terra, como Pomba Gira, Preto Velho, Caboclos e Ciganos. Nos tempos das senzalas, os negros, para poderem cultuar seus Orixás, procuraram características em comum de cada um com os santos da Igreja Católica, para então, usá-los como camuflagem em altares que na verdade, escondiam embaixo, os assentamentos das divindades africanas. Oxalá correspondia a Jesus; Ogum, a São Jorge; Oxum, a Nossa Senhora Aparecida; Iemanjá, a Nossa Senhora da Conceição; Iansã, a Santa Bárbara; Xangô, a São João Batista; Nanã, a Sant’Ana; Oxóssi, a São Sebastião; e Obaluaê, a São Lázaro. Este é um sincretismo que não existe no Candomblé.

Um dos pontos mais delicados em se tratando das religiões afro-descendentes é o holocausto de animais, os polêmicos sacrifícios. Quando perguntado sobre esse assunto, Pai Júlio, que tem 68 anos de vida espiritual e faz questão de dizer que se relaciona bem com todas as religiões, foi logo buscar sua Bíblia para frisar uma passagem do livro de Jó, capítulo 42, versículo 7: “’Tomai, pois, sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e oferecei um holocausto por vós’, Jesus disse isso. As pessoas condenam essa prática, mas não procuram estudar sua religião para perceber que deriva dela própria. Está aqui, está na Bíblia”, explica. Tanto no Candomblé, quanto na Umbanda, animais como galinhas, pombos, bodes, bois e carneiros são oferecidos aos Orixás. Nada é jogado fora, todas as partes do animal servirão de alimento. A pessoa especializada no sacrifício não pode deixar o animal sofrer ou sentir dor, do contrário, a oferenda não será aceita.

Os Babalorixás e Iyalorixás dizem que é preciso que as pessoas saibam que as religiões afro-descendentes, como todas as outras, buscam o caminho de Deus. O preconceito é filho da ignorância. Existem falsos profetas, mas o mal, assim como o bem, está dentro de cada um.

Fotos e Texto por Larissa Fontes

*Matéria publicada no O Jornal do dia 26 de dezembro de 2010, na página Universidades.