sexta-feira, 15 de maio de 2009

Eles só queriam ir embora


Mais um dia de trabalho. Sol a pino em cabeças que tentam se proteger com chapéus e bonés. O mau cheiro castigando quase se torna imperceptível para aqueles homens. Alberto anda em meio a um verdadeiro mar de lixo. Parece um pouco perdido em seu mundo interior. Com um saco nas costas, junta coisas que lhe parecem úteis. Talvez um pedaço de carne que ele não tem como saber de que bicho é. É natural que não queria estar ali. Além da poluição atmosférica, uma poluição sonora hoje toma conta do lugar. Um caminhão chega para descarregar mais algumas toneladas de puro lixo. Um barulho imenso. Os urubus já fazem parte da paisagem. Sobrevoam as cabeças. Pousam tão perto deles, que podem os olhar nos olhos. Ele só queria ir embora.
Pensa em sua mulher. Ana. Ela esperava mais daquela vida de casados. Ele próprio esperava outro sentimento ao chegar em casa e olhar aquela pessoa a quem dedicava tanto amor. Não aquele que sentia hoje. Estava grávida e pensava no que seria da criança que estava prestes a sair de dentro dela. Comida achada depois de muito catar no meio do lixo? Às vezes pensava besteira. Mas ele só queria ir embora.
Nunca tinha ouvido uma música. Como seria? Como seria sentir nascer uma alegriazinha no fundo de seu coração ao escutar uma melodia doce? Queria saber como era tanta coisa. Queria viver. Queria poder passear de mãos dadas com Ana em um lugar bonito. Quem sabe a praia! A única visão que tinha do mar era aquela lá de cima. Do lixão. De seu local de trabalho. De sua casa. Sim, porque ele também mora ali. Ele só queria ir embora.
Ana observava o marido entre tanta coisa podre e sofria. Queria não chorar, mas algumas lágrimas insistiam em não se aguentar dentro dos olhos. Sabia o tanto que ele sofria. O tanto que sonhava. Queria compartilhar dos mesmos sonhos dele. Às vezes se irritava com as conversar ilusórias dele, mas no fundo queria ser igual. Se não podiam viver, ao menos ele podia imaginar. Sonhar. Viver tudo dentro da própria cabeça. Mas nem isso ela conseguia. A realidade a puxava de volta. Aquele cheiro a trazia de volta de um mundo do qual queria fazer parte. Dançar! Como ela queria saber o que é isso. Pegar na mão de Alberto, abraçá-lo e rodopiar os dois, juntos, por um grande salão em penumbra. Ela também só queria ir embora.
Ao acompanhar os passos do marido de longe, ela imaginou o filho pequeno, correndo sem roupa pelo meio de todo aquele lixo. Sentiu uma pontada de um desespero que não podia fazer nada para espantar. Porque daqui a poucos meses, aquilo poderia estar acontecendo. Ela só queria ir embora.
Sem que percebesse, Alberto chegou perto e a abraçou. Eles eram iguais. Estavam pensando nas mesmas mazelas. Compartilhavam todos os sofrimentos. Lágrimas unidas agora. Eles só queriam ir embora.

Larissa Fontes

23 comentários:

CFC disse...

Eu diria que este encontro, por hora doce...Expressa a alegria, plena e absoluta da certeza do inicio da amizade e do apreço...Digo: aqui presente em nós.

Grato por vir e por marcar.......

Fernando Costa.

Ana Carla disse...

Hummm... ficou massa viu? Rendeu num foi?! E a "Ana" em minha homenagem. kkkkkkkkkkkkk

Anônimo disse...

The sun will must to born for all!!

It´s wonderful your text!

I´ll back here.



Kisses sweet

Helena Chiarello disse...

O que você escreve é de uma sensibilidade e intensidade que a sensação chega a ser tátil.
Aquela frase do texto anterior "tão com força que passe pro físico e chegue a doer", se aplica bem aqui.
É um presente ler você.
Beijo grande!

Vitor Andrade disse...

Me lembrou muito Vidas Secas.
A triste saga de quem nasce predestinado a sonhar, e muito provavelmente sem realizações. Então sempre me questiono nessas horas. Quanto vale um sonho? Muito e nada!
Mas é sempre bom. Sempre uma fuga da realidade insistente de muitas rotinas vazias de poesia.

Mari disse...

Oi,linda

Belíssimo...vc tem o estilo de Graciliano Ramos..adorei..

obrigado pela visita.Estou acompanhando seu blog.
bjus

Ígor Andrade disse...

Agradeço o comentário.
Abraço!

Manuela disse...

"Lágrimas unidas agora." Seus textos são sempre sutis, intensos... as vezes sinto que posso "toca-los" ... Muito bonito =)

Anônimo disse...

Larissa, tudo bem?

obrigada pelo comentário lá no "entre-versos"!

volte sempre...

beijos
Capitu

Filipe Aguiar disse...

E eu me lamentando em meio a um "lixo sentimental"...Essa é a essencia - ter de sofrer pra viver e viver pensando em não sofrer!
Simplesmente lindo o texto! O povo da terrinha boa sabe escrever!! Hehehe

Eu, Thiago Assis disse...

triste realidade de sofridas almas gêmeas.

nelson netto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
nelson netto disse...

Putz.
Muito bom!
O texto está de uma sensibilidade incrível!

Ele queria música!
Ela queria dançar!
Passear pela praia, condições de vida. O mínimo de tudo que pode se chamar de vida. Coisas que não tem preço porque deveria pertencer a todos. A gente tem tudo isso e não pensa no quanto é importante. Se vê descontente com tudo ao redor, entra em desespero, mas ainda pode sonhar. Sonhar! Percebe-se uma diferença no que Ana e Alberto entendem por sonho.

Não se dá atenção a suavidade do vôo do urubu pelo que ele representa, mas o seu texto capta essa suavidade de cheiros e cores - nada agradáveis - imperceptível a essa (nossa) realidade.

Podia ficar falando muito sobre o texto...
Ficou muito bom! Genial!
Parabéns!

(e Mula Manca é muito bom!)

http://contandogotas.wordpress.com/

Salve Jorge disse...

Embora
Bora?
Pra Bora Bora
Embola?
Gasta a sola
Assola
Ah, só lá
Agora
Sem demora
Devora
Se devorará...

Rafael Sperling disse...

Também quero ir embora, embora esteja com sono em bora.

Marina disse...

Da maneira em que está o mundo, nós também estamos vivendo em meio ao lixo, mesmo metafórico, talvez mais imundo. Alguns querem ir embora, mas a maioria só quer que a coisa se resolva para que possam viver em paz no lugar que aprenderam a chamar de lar.

É um lindo texto, de uma sensibilidade incrível.

Abraço, Larissa!

Renata Caldeira disse...

uma palavra resume o relacionamento dos dois, companheirismo. Belo texto! Como disseram, de uma sensibilidade incrível.

Larissa Lins disse...

Nossa, que texto forte.
Forte, mas feito de uma forma muito delicada, o que o torna tão espantoso quanto fascinante.
Em pensar que algo, tão distante de nós, acontece de verdade. Há, de fato, pessoas que encaram essa realidade todos os dias, que desejam outras vidas, e que não enxergam saídas nem alternativas em seus próprios caminhos.

p.s.: Uma dúvida. A faculdade de jornalismo é tão interessante quanto parece? Quer dizer, vocês estudam mesmo as comunicações, sociologia, etc.?

Tamires Lima disse...

E como mtos disseram aqui,
parece que li um pouco de Graciliano Ramos, porém com muito sutileza.
A vida tem dessas. Porém os sonhos nunca são demais. Voar grande e alto, sabe? Se da vida já temos um não, nada custa ir em busca do SIM. Grande e sonoro.

Lágrimas rolaram, mas espero ver uma continuação, depois, pra um sorriso bonito brotar daqui, ok?

Lindo, Lare.

Beijos n'ocê.
E obrigada pelo carinho, a recíproca é totalmente verdadeira. :D

Raquel Oliveira disse...

Diria mudar...
Viver, aprender, desprender, seguir..
Mas unidos em um só coração.
Lindo....
bjos

disse...

Nossa, que triste ._.

Cássio disse...

PARABÉNS....adorei o texto....trist e lindo

Fabio Machado disse...

O caminho às vezes é flagelante, o chão massacrante, a dor lancinante, mas o Amor, esse é onipresente, onisciente, o Deus que nos acompanha eternamente, a nossa busca inconsciente.

Continue amando, Larissa.